quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O divino litígio



Porque há esperança para a árvore,
que, se for cortada, ainda torne a brotar,
e que não cessem os seus renovos.
Ainda que envelheça a sua raiz na terra,
e morra o seu tronco no pó,
contudo ao cheiro das águas brotará,
e lançará ramos como uma planta nova.
O homem, porém, morre e se desfaz;
sim, rende o homem o espírito, e então onde está?
Como as águas se retiram de um lago,
e um rio se esgota e seca,
assim o homem se deita, e não se levanta;
até que não haja mais céus não acordará
nem será despertado de seu sono.

Jó 14:7-12




Terra, longevidade, descendentes e uma vida feliz é o que a aliança promete aos israelitas.
Os profetas transmitem o mesmo conceito. Amós lembra seus ouvintes que Israel estabeleceu um contrato com YHWH, selado por um juramento. Ele está descrevendo o que se pode chamar de uma ação judicial divina, iniciada para preservar um acordo não honrado por uma das partes. Oséias usa a metáfora de um casamento que se deteriorou; trata-se evidentemente de uma outra obrigação contratual selada por um juramento. Deus contempla periodicamente a ideia A resposta que Jó recebe não é que os caminhos de Deus são inescrutáveis; isso ele já sabia.de processar o seu cônjuge adúltero e de pedir o divórcio.

É só no livro de Jó que é articulada a noção oposta, a de que seres humanos podem legitimamente processar Deus pela falha de cumprimento de suas obrigações contratuais. Para que esse argumento seja logicamente convincente, não pode existir a ideia de uma vida de natureza substancial depois da morte. Se houvesse vida de natureza substancial depois da morte, o sofrimento de Jó não bastaria para uma ação judicial legítima e válida contra a divindade. Se houvesse vida depois da morte, Jó estaria justificado em dizer que está sendo falsamente acusado por seus amigos e que sua aflição é dolorosa, mas não poderia colocar em dúvida a justiça divina, porque o resultado não estaria completo nesta vida. É por isso que a noção de sheol está presente no livro de Jó – não uma recompensa ou punição pós-morte, mas a mera eliminação final de almas.

[...]

O leitor contemporâneo reage muito mal ao modo como dominador Deus aparece e silencia Jó atestando a sua insignificância. Queremos uma resposta justa, igualitária, democrática em que todos tenham os mesmos direitos, poderes e possibilidade de resposta. Exigimos uma resposta de Deus ao seu tratamento inclemente da inocência de Jó. Queremos ouvir que a família de Jó não sofreu por causa dele. Queremos saber porque Deus permite o mal neste mundo.

Jó, no entanto, tem objetivos menos ambiciosos. O que ele quer é apenas chamar Deus ao tribunal. Não somos capazes de apreender quão vertiginoso é esse seu pedido: a presença de Deus enquanto Jó está vivo.


E esse vertiginoso pedido é exatamente aquilo que é concedido a Jó. A resposta é precisamente aquela que ele tinha esperança de ter, mas não tinha o direito de esperar. A resposta que Jó recebe não é que os caminhos de Deus são inescrutáveis; isso ele já sabia. A resposta é que Deus é tão misericordioso que se permite ser levado ao tribunal e processado. Deus na verdade comparece voluntariamente ao seu próprio tribunal a fim de dar testemunho, e mostra-se mais misericordioso do que qualquer monarca do Oriente Médio.

A Jó é permitido ver Deus – se não diretamente, a partir do redemoinho, – e ele não precisa sequer ascender ao céu para fazê-lo. Ao contrário os outros viajantes celestes do antigo Oriente Médio, é Deus que vem até Jó. Assim, embora fique aterrorizado e assombrado diante do poder de Deus, Jó sai do tribunal justificado. E o texto sustenta que pelo menos um inocente teve suas reinvidicações ouvidas depois de seu sofrimento, e nesta terra. Esperamos tanta coisa mais que acabamos perdendo de vista a afirmação que o texto faz.

Alan F. Segal, em Life After Death

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