V. O QUINÁRIO
O quinário é o número religioso, pois é o número de Deus  reunido ao da mulher.
A fé não é a credulidade estúpida da ignorância  maravilhada.
A fé é a consciência e a confiança do amor.
A fé é o grito da razão que persiste em negar o absurdo, mesmo  diante do desconhecido.
A fé é um sentimento necessário à alma como a respiração à  vida: é a dignidade do coração, é a realidade do entusiasmo.
A fé não consiste na afirmação deste ou daquele símbolo, mas na  aspiração verdadeira e constante às verdades veladas por todos os  simbolismos.
Um homem rejeita uma idéia indigna da divindade, quebra suas  falsas imagens, revolta-se contra odiosas idolatrias, e dizeis que é um  ateu?
Os perseguidores da Roma decaída também chamavam os primeiros  cristãos de ateus, porque não adoravam os ídolos de Calígula ou de Nero.
Negar toda uma religião e mesmo todas as religiões de  preferência a aderir a fórmulas que a consciência reprova é um corajoso e  sublime ato de fé.
Todo homem que sofre por suas convicções é um mártir da fé.
Talvez se explique mal, mas prefere a justiça e a verdade a  qualquer coisa; não o condeneis sem entendê-lo.
Acreditar na verdade suprema não é defini-la, e declarar que  nela se crê é reconhecer ignorá-la.
O apóstolo São Paulo limita toda fé a estas duas coisas:  acreditar que Deus existe e que ele recompensa aqueles que o procuram.
A fé é maior que as religiões, porque precisa menos dos artigos  da crença.
Um dogma qualquer constitui apenas uma crença e pertence a uma  comunhão especial; a fé é um sentimento comum a toda a humanidade.
Quanto mais se discute para precisar, menos se acredita; um  dogma a mais é uma crença de que uma seita se apropria e eleva assim, de alguma  maneira, à fé universal.
Deixemos os sectários fazerem e refazerem seus dogmas, deixemos  os supersticiosos detalharem e formularem suas superstições, deixemos os mortos  enterrarem seus mortos, como dizia o Mestre, e acreditemos na verdade indizível,  no absoluto que a razão admite sem compreender, no que pressentimos sem  saber.
Acreditemos na razão suprema.
Acreditemos no amor infinito e tenhamos piedade das estupidezes  da escola e das barbáries da falsa religião.
Ó homem! dize-me o que esperas, e eu dir-te-ei o que vales.
Rezas, jejuas, velas e crês que escaparás assim sozinho, ou  quase sozinho, à perda imensa dos homens devorados por um Deus cioso. És um  hipócrita e um ímpio.
Fazes da vida uma orgia e esperas o nada como sono, és um  doente ou um insano.
Estás pronto a sofrer como os outros e pelos outros e esperas a  salvação de todos, és um sábio e um justo.
Esperar não é ter medo.
Ter medo de Deus! Que blasfêmia!
O ato de esperança é a oração.
A oração é o derramar-se da alma na sabedoria e no amor  eternos.
É o olhar do espírito para a verdade e o suspiro do coração  para a beleza suprema.
É o sorriso da criança para a mãe.
É o murmúrio do bem-amado que se debruça para os beijos de sua  bem-amada.
É a doce felicidade da alma amante que se dilata num oceano de  amor.
É a tristeza da esposa na ausência do novel esposo.
É o suspiro do viajante que pensa em sua pátria.
É o pensamento do pobre que trabalha para alimentar a mulher e  os filhos.
Oremos em silêncio e ergamos em direção de nosso Pai  desconhecido um olhar de confiança e de amor; aceitemos com fé e resignação a  parte que nos cabe nas penas da vida, e todas as batidas de nossos corações  serão palavras de oração.
Necessitamos acaso informar a Deus que coisas lhe pedimos, já  não sabe ele o que nos é necessário?
Se choramos, apresentemos-lhe as nossas lágrimas; se nos  regozijamos, dirijamos-lhe o nosso sorriso; se ele nos atinge, baixemos a  cabeça; se nos acaricia, adormeçamos em seus braços!
Nossa oração será perfeita, quando orarmos sem sequer saber que  oramos.
A oração não é um ruído que fere os ouvidos, é um silêncio que  penetra no coração.
E doces lágrimas vêm umedecer os olhos, e suspiros escapam como  a fumaça dos incensos.
Fica-se tomado por um inefável amor a tudo o que é beleza,  verdade, justiça; palpita-se de uma nova vida e não se teme mais morrer. Pois a  oração é a vida eterna da inteligência e do amor; é a vida de Deus na terra.
Amai-vos uns aos outros, eis a lei e os profetas! Meditai e  compreendei essa palavra.
E, quando tiverdes compreendido, não leiais mais, não procures  mais, não duvideis mais, amai!
Não mais sejais sábios, não mais sejais eruditos, amai! Essa é  a doutrina da verdadeira religião; religião quer dizer caridade, e o próprio  Deus não é senão amor.
Eu já vos disse: amar é dar.
O ímpio é aquele que absorve os outros.
O homem pio é aquele que se expande na humanidade.
Se o coração do homem concentra em si próprio o fogo com o qual  Deus o anima, é um inferno que devora tudo e que só se preenche de cinzas; se  ele o faz resplandecer fora, torna-se um doce sol de amor.
O homem doa-se à família; a família doa-se à pátria; a pátria,  à humanidade.
O egoísmo do homem merece o isolamento e o desespero, o egoísmo  da família merece a ruína e o exílio, o egoísmo da pátria merece a guerra e a  invasão.
O homem que se isola de todo amor humano ao dizer: Eu servirei  a Deus, este se engana. Pois, diz o apóstolo São João, se ele não ama ao próximo  que vê, como amará a Deus que não vê?
É preciso dar a Deus o que é de Deus, mas não se deve recusar  mesmo a César o que é de César.
Deus é quem dá a vida, César é quem pode dar a morte.
É preciso amar a Deus e não temer a César, pois está dito no  livro sagrado: Quem com ferro fere com ferro perecerá.
Quereis ser bons, sede justos; quereis ser justos, sede  livres!
Os vícios que deixam o homem semelhante à besta são os  primeiros inimigos da sua liberdade.
Olhai o bêbado e dizei-me se essa besta imunda pode ser  livre!
O avaro maldiz a vida de seu pai e, como o corvo, tem fome de  cadáveres.
O ambicioso quer ruínas, é um invejoso em delírio; o devasso  escarrou no seio da mãe e encheu de abortos as entranhas da morte.
Todos esses corações sem amor são punidos pelo mais cruel dos  suplícios: o ódio.
Pois, saibamo-lo bem, a expiação está contida no pecado.
O homem que faz o mal é como um vaso de barro defeituoso,  quebrar-se-á, a fatalidade o quer.






