Antes que houvesse o Paraíso
Paulo Brabo
Já foi amplamente observado, e a própria Bíblia oferece testemunho suficiente, de que os antigos hebreus não conheciam – e portanto não promoviam – os conceitos hoje inescapáveis de alma imortal, de recompensa futura, de vida após a morte, de céu e inferno. Dois terços da Escritura hebraica estavam concluídos e a Bíblia não havia ainda feito qualquer menção, mesmo que indireta, à ressurreição ou a um julgamento depois da morte.
Retroativamente, depois de dois mil anos de ouvir a religião ocidental batendo na tecla da imortalidade pessoal, pode ser difícil apreender que os primeiros escritores do Antigo Testamento (entre eles os autores do Pentateuco, de Eclesiastes, das narrativas de Reis e de inúmeros Salmos) viam a vida e a morte de modo muito diverso.
Enquanto hoje temos a esperança (ou a ameaça) de uma vida futura plena e consciente, os autores da maior parte do Antigo Testamento ensinavam que deveríamos apostar todas as nossas cartas nesta vida, porque (enfatizavam eles) não há outra – pelo menos não uma existência que se compare a esta em termos de iniciativa, satisfação e relacionamento com Deus e os homens.
“Eis aqui o que eu vi, uma boa e bela coisa: alguém comer e beber, e gozar cada um do bem de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol, todos os dias da vida que Deus lhe deu; pois esse é o seu quinhão/tudo que ele vai ter” (Eclesiastes 5:18).
A idéia dos antigos hebreus de vida depois da morte é representada por um local ou condição obscuros chamados Seol (ou Sheol), palavra que pode muito bem ser metáfora (digamos, como “túmulo”) para a morte definitiva ou o fim da existência.
“Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças; porque no Seol, para onde tu vais, não há obra, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma (9:10).”
O Seol difere dos conceitos posteriores de céu e do inferno em inúmeros sentidos importantes. Em primeiro lugar, trata-se de um destino democrático, local para onde vão indistintamente justos e injustos:
“E embora vivesse duas vezes mil anos, mas não gozasse o bem, [de que adiantaria?] – não vão todos para um mesmo lugar? (6:6).”
A existência (ou não-existência) no Seol não implica, por essa razão, no julgamento da conduta que a pessoa abraçou em seus dias na terra, ou numa espera por esse julgamento; não implica em recompensa ou castigo, não implica em ressurreição posterior. É lugar para a qual caminham todos, condição em que ninguém deve nada esperar e nada se pode fazer.
Para os autores dos primeiros dois terços do Antigo Testamento, portanto, a morte representava o dramático término da vida espiritual, o fim do relacionamento do homem com Deus. “Volta-te, Senhor, salva-me a alma/vida; pois na morte não há lembrança de ti; no Seol quem te louvará? (Salmo 6:4-5)”. O salmista entende aqui que a existência da sua alma corresponde à sobrevivência da sua vida. Ele não está pedindo pela salvação eterna da alma após a morte, conceito que claramente desconhece; seu pedido é que Deus prolongue a sua vida, de modo a que o seu relacionamento com Deus seja prolongado: “pois na morte não há lembrança de ti”.
Na melhor das hipóteses, o Seol era visto como um local de repouso final em que as pessoas estavam finalmente livres dos tormentos e arbitrariedades da condição humana (Jó 3:11-19). Porém mesmo quando visto como oportunidade de sono ou descanso, o Seol era a condição negativa que contrastava com a condição positiva de vida. Não havia promessa ou expectativa de recompensa, de consciência pessoal ou de ressurreição (“Mostrarás tu maravilhas aos mortos? ou levantam-se os mortos para te louvar? [Salmo 88:10)]“; “Não há coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras; pois quem o fará voltar para ver o que será depois dele? [Eclesiastes 3:22]“; “Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce ao Seol nunca tornará a subir [Jó 7:9]).
Para os antigos hebreus, a recompensa para uma conduta de obediência a Deus era vida, especialmente entendida como “prosperidade na vida” – mas esta vida. O castigo pela desobediência a Deus era a morte, especialmente entendida como morte antecipada – mas morte comum a todos. A vida podia ser eventualmente prolongada pela obediência (“para que se prolonguem os seus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá”), mas uma vida longa e próspera na presença de Deus e uma prolongação de vida na forma de uma descendência numerosa era o máximo o que uma pessoa íntegra podia pedir e esperar.
Um caso como o de Enoque, que Deus decidiu “tomar para si” para viver na sua presença, era tido como exceção e como extraordinária exceção era celebrado. Para a esmagadora maioria, mesmo para a maioria dos justos, tudo que havia era a perspectiva de uma boa vida e uma boa morte. Depois, o nada, o túmulo: o Seol.
Dentro dessa visão de mundo, o homem era visto como pó da terra animado por um espírito – sendo que esse conceito de “espírito” não tinha qualquer relação com a idéia posterior de alma pessoal e imortal. Para os antigos hebreus, “espírito” era o sopro de vida inculcado temporariamente por Deus na matéria inanimada. Não trata-se de um espírito pessoal, nem tampouco de um espírito limitado ao homem. Todas as coisas vivas, mesmo os animais, eram tidas como animadas pelo mesmo espírito/sopro de vida.
O autor de Eclesiastes observa que “nenhum homem há que tenha domínio sobre o espírito/sopro da vida, para o reter (8:8)” e lamenta:: “Pois o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais; uma e a mesma coisa lhes sucede; como morre um, assim morre o outro; todos [homens e animais] têm o mesmo fôlego/espírito; e o homem não tem vantagem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para um lugar; todos são pó, e todos ao pó tornarão (3:19-20).” Mesmo um grande trecho Novo Testamento adentro, Tiago lembra que “o corpo sem espírito/sopro de vida é morto (2:26)”.
Quando a pessoa morria, então, não se cria que seu espírito continuasse a ter uma existência pessoal independente do corpo. O corpo voltava à terra (“do pó vieste, ao pó retornarás”) e o espírito/força vital voltava a Deus, que o havia concedido (Eclesiastes 12:7).
Os primeiros autores da Bíblia criam e escreviam sobre um mundo em que depois da morte não havia vida ou consciência, nem promessa de recompensa ou justiça futura. Era uma religião peculiar e limpa, em que o contraste essencial era mantido entre céu e terra, divindade e criação, e apenas Deus retinha e desfrutava do dom da imortalidade (Salmo 115:16-18). A meros homens cabia viver uma vida digna diante de Deus e morrer fazendo a coisa certa – porque na sepultura, repetiam constantemente a si mesmos, não teriam oportunidade de fazer uma coisa ou outra. Para os antigos hebreus, uma pessoa só podia ser espiritual enquanto vivia.
Essa perspectiva existencialista está perfeitamente resumida na declaração do salmista: “[Quando alguém morre] Sai-lhe o espírito, e ele volta para a terra; naquele mesmo dia perecem os seus pensamentos (Salmo 146:4)”.
Então, no último terço da Escritura hebraica, especialmente nos profetas tardios e na porção que os judeus chamam de Ketuvim/Literatura, algo aconteceu. O livro de Daniel, que foi escrito muito tempo depois dos dias que descreve (motivo pelo que os judeus não o contam entre os livros históricos), é o primeiro da Bíblia a mencionar diretamente a ressurreição:
“Naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta a favor dos filhos do teu povo; e haverá um tempo de tribulação, qual nunca houve, desde que existiu nação até aquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que for achado escrito no livro. E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno (12:1-2)”.
Assim, do nada.
Nos séculos formativos que antecederam Jesus e viram a confecção dos últimos livros da Escritura hebraica, os judeus haviam encontrado – num lugar que não eram as antigas escrituras ou a sua tradição – a idéia de ressurreição, de julgamento e de salvação/perdição eterna.
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